Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVIII

A noite ia adiantada. Traçámos os planos de busca dos salteadores de acordo com as informações recolhidas, os presságios da lua cheia, e os poderes misteriosos do meu cavalo. Seguiríamos pelo caminho da Floresta do Palão. Porém, para evitar que as pessoas da povoação soubessem para onde íamos, tomámos inicialmente o caminho de regresso a Moncorvo. Só quando íamos longe e já ninguém nos podia ver virámos na direcção da Floresta do Palão.

Seguimos por uns atalhos pelo meio dos soutos. Ouvíamos o repetido piar das corujas, musica agoirenta que nos causava arrepios de medo. Para prevenir a surpresa de qualquer confronto desembainhei a espada e o Botelho por sua iniciativa empunhou a lança. A atmosfera agoirenta adensou-se. O jumento zurrou e o cavalo relinchou. Ocorreu-me a ideia de que também ficaram com medo, depois pareceu-me que comunicavam qualquer coisa com as corujas, mais tarde pensei que animais sem asas não comunicavam com os que as tinham, que comentariam entre si qualquer sinal que vinha da lua cheia e, por último, concluí que nada sabia. Mais adiante lembrei-me de ter lido num livro que na antiguidade havia cavalos alados. Se havia cavalos alados também havia jumentos alados, por uma questão de igualdade. Sendo assim, os nossos animais poderiam comunicar com as corujas.

Continuámos a caminhar em alerta máximo. O Botelho ia à frente sem dizer qualquer palavra. De vez em quando fazia exercícios com a lança. Seriam para se treinar ou para libertar a sua ansiedade ou as duas coisas. Os nossos animais de vez em quando paravam repentinamente, espirravam sem estarem constipados, arrebitavam as orelhas, olhavam para os lados e recuavam. Seria um sinal de que nas redondezas havia qualquer coisa estranha e perigosa. Estávamos perto de umas grutas da floresta do Palão. Ouvimos os gritos de um homem que pedia ajuda, e dizia, além de outras coisas, que havia ali ladrões.

Ao sairmos de um pinhal vimos o homem que pedia ajuda a fugir montado num cavalo e atrás dele iam também a cavalo dois supostos bandidos. O Botelho, que ia adiantado, mal viu os salteadores investiu na sua direcção com a lança em posição de os atingir. Imprevistamente o jumento transformou-se em animal alado e passou a correr ou a voar a grande velocidade e com grande ruído.

Fiquei com receio de que o Botelho os trespassasse com a lança. Tivemos sorte porque os supostos bandidos, ao verem a sua vida em risco, deitaram-se abaixo dos cavalos e logo iniciaram a fuga. De nada lhes valeu. Cercados por nós e pela pessoa que anteriormente estava a ser perseguida, renderam-se. Traziam à cinta, cada um, um punhal de lâmina comprida, tendo sido logo desarmados e acorrentados.

Seguidamente o Botelho foi buscar os cavalos que eles traziam, um deles com alforges. Perguntámos-lhes se os cavalos eram seus. Responderam que sim. Logo o perseguido afirmou que conhecia bem o cavalo dos alforges e que pertencia ao Fidalgo Baldo. Um deles respondeu que o tinham encontrado abandonado e enquanto não o reclamassem pertencia-lhes, segundo as leis do Reino. Revistados os alforges ali encontrámos ouro que pertenceria a uma Santa e uma salva em prata onde estava escrito: “oferta do povo de Lagoaça ao seu pároco na comemoração dos seus vinte e cinco anos de sacerdócio".

Um dos salteadores era alto e tinha a roupa rota. No chão estava um chapéu roto e um tapolho. Perguntámos-lhes se aqueles objectos eram seus. Responderam que não e viam muito bem.

Entretanto nasceu o sol. Olhei para o jumento e pude verificar que não tinha asas, não havia nenhumas caídas no chão e estava calmo. Então pus-me a pensar: terei visto na realidade o jumento com asas ou terei pensado que as tinha só porque era muito rápido? Não tinha dúvidas de que vi o jumento com asas. O mesmo foi-me confirmado pelo Botelho, acrescentando que as mesmas desapareceram quando desapareceu o luar da lua cheia. Não havia conhecimento de que os jumentos se transformavam em animais alados com o luar da lua cheia. Haveria outras explicações. Naquela noite tinha dado água ao jumento da que recolhi com um cântaro na fonte da moura, para curar o seu reumatismo. É provável que tivesse virtudes mágicas para o transformar em animal alado, por si, ou com a ajuda dos poderes da lua cheia. Poderia também ter acontecido que uma ave se tenha espojado num cruzamento de caminhos e que no mesmo sítio se tenha espojado depois o jumento. Se tal aconteceu estava aberta a possibilidade de o jumento se transformar em animal alado durante o luar da lua cheia.

Estávamos prontos para partir quando um pastor de ovelhas se aproximou de nós. Começou por saudar-nos. Depois contou-nos que aquele sítio era muito respeitado, porque nas grutas que estavam à nossa frente moravam os espíritos de uns famosos artistas que há milhares de anos ali viveram.

Foram esses artistas que gravaram animais num rochedo na margem direita do rio Douro, perto da povoação de Mazouco. Algumas dessas gravuras estavam danificadas, restando intacta apenas a de um cavalo.

Havia pessoas que diziam que entre as gravuras danificadas estava um jumento alado e outras afirmavam que não é um jumento, mas um cavalo alado.

Regressámos à Quinta de Dom Baldo, a quem entregámos o seu cavalo, depois de o reconhecer. Era o cavalo que lhe tinham roubado em Vale de Ferreiros.

Comemos dos restos que ficaram do casamento e depois iniciámos o regresso a Torre de Moncorvo.

Com a valentia e grande coragem demonstrados neste caso, o Botelho poderia ver cumprido o seu grande desejo de ser comandante ou governador. 

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