Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo IV

Continuámos a nossa viagem por um vale estreito, num espantoso silêncio, donde se avistava a povoação do Felgar a meio da encosta do nosso lado direito. Era um povoado com as casas caiadas de branco, cercado por olarias e com uma igreja no seu ponto mais alto. As ruas estavam quase desertas àquela hora. Uma mulher vestida de luto encontrava-se no adro da igreja, com as mãos pousadas em cima do lenço da cabeça, aparentemente a observar a povoação ou a meditar sobre o transcendente. Não esteve ali muito tempo. Pegou no cesto que estava no chão, com uma lebre, pô-lo à cabeça em cima de uma rodilha e juntou-se a uma caravana de cavalos que transportava cântaros de barro para vender na feira de Moncorvo.

Pouco depois parei num cruzamento à espera do Botelho para lhe perguntar que direcção devíamos tomar, pois ele conhecia melhor aqueles caminhos. Antes de o ouvir, o meu cavalo impetuosamente tomou o caminho que dava para o cemitério, ao lado da igreja, o que não era do meu agrado, porque durante a lua cheia, ali poderiam aparecer espíritos, fantasmas, almas penadas ou pessoas perdidas que fugiram do outro mundo. Do cemitério saíam lentamente fios finos de fogo, os quais paravam no ar e depois apagavam-se. Ouvia-se ou parecia-me que se ouvia um ruído semelhante ao do arrastar de lajes, que vinha dos lados do cemitério. Provavelmente era o ruído das coberturas das sepulturas que estavam a ser abertas pelos seus ocupantes.

Seguiu-se o piar de uma coruja. Olhando em redor nada se via, nem se sabia donde vinha aquela música melancólica que nos causava arrepios de medo. O piar da coruja pronunciava mau augúrio, mas quando tal acontecia junto dos cemitérios estava ligado ao anúncio próximo da morte de alguém, ou que alguma alma penada vagueava por ali.

Enquanto isto sucedia, surgiram dois vultos à nossa retaguarda, do tamanho de pessoas. Mais adiante, em campo descoberto, vimos claramente que tinham o corpo de homens e a cabeça de lobos. Havia a crença popular de que comiam carne humana.

Puseram-se um ao lado do outro, virados na nossa direcção, uivavam como lobos, escavavam com as patas da frente no chão, levantavam o pelo, abriam a boca ao máximo e mostravam os dentes afiados para com a maior fúria e velocidade se atirarem contra nós e contra os nossos animais. Criaram um ambiente de terror. O meu ajudante, profissional experiente nestas batalhas, sabia que o relampejo da prata os afugentava.

Por isso, quando se lançaram contra nós, o Botelho aproximou o crucifixo de prata (que usava na lança) do olho luminoso do jumento e a luz reflectida logo os afastou. Então procuraram atacar-nos pela retaguarda. Para os podermos atacar de frente era necessário que os nossos animais estivessem treinados para rodar rapidamente sobre si mesmos, mas não estavam. Assim, o jumento, devido ao reumatismo de que padecia e à falta de treino, ao iniciar tal manobra logo caiu ao chão com grande estrondo, acontecimento que perturbou os lobisomens e os fez recuar. Embora estivesse vivo, ali permaneceu sem procurar levantar-se nem sequer pestanejar. Na altura não se sabia, nem houve tempo para se saber, se tal comportamento se deveu a uma impossibilidade de se levantar ou se quis permanecer deitado devido à preguiça que reinava e ainda reina nestes animais, ou se quis fingir que estava morto para que o deixassem em paz, de acordo com a sua natureza pacífica. De qualquer modo não reza a história que com a colaboração destes animais se tenha ganho qualquer batalha.

Então o Botelho quis resolver o problema sozinho, tendo em conta a sua formação em infantaria. Enfrentou os lobisomens levantando a lança para os atingir de tal modo que os pudesse cortar ao meio. Porém, os lobisomens, apercebendo-se do perigo que corriam naquela situação desvantajosa para eles, não esperaram pelo pior, fugiram e pararam à distância, em cima de um rochedo. Entretanto nasceu um novo dia, e com o aparecimento do sol os lobisomens voltaram à forma humana, e o jumento, já livre de perigo, levantou-se como se nada lhe tivesse acontecido.

Estava certo o saber popular: havia homens que durante a lua cheia se transformavam em lobisomens e quando esta acabava, ao nascer do sol, regressavam à configuração humana. Se essas pessoas se transformavam em lobisomens por vontade própria ou por uma maldição, não se sabia. De qualquer modo, quando se desconfiava que determinada pessoa fosse lobisomem, os populares, amedrontados, com o pretexto de que seria possuído pelo demónio, expulsavam-no da sua povoação. Para não serem descobertos, escondiam-se durante o dia e atacavam as pessoas durante a noite.

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