No dia seguinte, saímos da povoação de Carviçais antes do amanhecer. Já íamos
longe quando tocou o sino da sua igreja, para a missa ou para um baptizado. O sol
abriu as suas portas e então pude ver ao longe, entre as montanhas e o céu, a Quinta
do Fidalgo de Martim Tirado, a qual distava dali umas cinco léguas, seguindo pelo
caminho do Canamor. Tive que esperar um pouco porque o meu ajudante se atrasou.
Entretanto pus-me a observar aquelas montanhas, parecendo-me que estavam
pintadas. Eram uma coisa admirável. Porém, o Botelho explicou-me que não estavam
pintadas, mas cobertas de um manto multicolor de arbustos e árvores, sobretudo
rosmaninho, giesta, esteva, pinheiros, castanheiros, amendoeiras, oliveiras e cereal.
Os pássaros, com os mais variados chilreios, saudavam a chegada do sol e os insectos
zumbiam em coro por todo o lado, lançando-se sobre as flores para recolherem o seu néctar.
Tomámos o caminho do Canamor e pouco depois penetrámos num bosque de sobreiros, onde vimos algumas pessoas conhecidas do Botelho a tirar
a cortiça daquelas árvores, que naquele sítio serviam para fazer colmeias e barcos para transportar sonhos.
Continuando a nossa viagem avistámos perto de nós, numa colina, as ruínas de
uma vila romana. Fiquei assombrado com uma luz azul que as ligava, em arco, à copa
dos sobreiros da mata que acabávamos de atravessar. A cor azul da luz misturada com
a cor verde dos sobreiros criava uma cor verde-clara cujo matiz não era conhecido na
natureza. Nunca tinha visto nem ouvido falar de coisa semelhante. O Botelho primeiro
dizia que não via nada, talvez por estar virado de frente para o sol. Persignou-se e
mudou de direcção. Então exclamou maravilhado que aquilo era um milagre ou uma
coisa extraordinária do outro mundo. Louvado seja Deus! Não se ficou a saber se o
Botelho passou a ver o que não via antes por ter mudado de direcção ou por se ter
persignado. Talvez estivesse em pecado e ao persignar-se terá expulsado o demónio,
bruxedo ou coisa parecida que o impedia de ver. Poderia estar a ver coisa diferente do
que eu via por se ter persignado.
Tinha dúvidas sobre se o arco da luz partia das ruínas romanas em direcção
aos sobreiros, ou se partia destes em relação àquelas. Aproximámo-nos das ruínas e
então pudemos ver que a luz partia de um altar romano, que estava no cruzamento de
caminhos. Tudo indicava que a luz provinha do interior da rocha do altar. A ser assim
estávamos a assistir a um milagre. Além disso, até então ninguém tinha falado naquela
luz. Aproximámo-nos mais e então eram visíveis uns veios azuis na pedra.
Poderia a luz azul ser o reflexo daqueles veios e não vir do seu interior. Não
constava que até então alguém tivesse visto aquela luz. O Botelho explicou que aquele
altar tinha sido desenterrado uns dias antes, e que estaria muito sujo da terra que o
cobria. No dia em que ali chegámos choveu muito, a chuva terá limpado o altar e
então passou a brilhar. Mudámos o altar numa direcção em que não recebia directamente
os raios do sol. A luz azul continuava a sair do altar mas um pouco menos intensa.
Poderia receber a luz solar indirectamente, que era muito intensa, naquele sítio. Poderia
ser também o espírito de um ou vários romanos que, tendo fugido do inferno ou do
purgatório, vagueavam pelo mundo.
Nisto vimos uma mulher velha de luto a aproximar-se de nós com uma vassoura na
mão. O Botelho, dado o seu carácter impetuoso e a ambição de ganhar fama, em vez de
falar com a mulher, logo considerou que ela era uma bruxa perigosa, pegou na lança e
foi na sua direcção com o objectivo de a agredir ou trespassar se necessário. A mulher
ou bruxa, ao aperceber-se das intenções daquele, logo desatou a correr e desapareceu de
forma misteriosa atrás de uns penhascos. Teria razão o Botelho ao considerá-la bruxa?
Se fosse bruxa teria usado a vassoura para voar e não o fez. Talvez não o tenha podido
fazer porque o Botelho usava na lança um crucifixo benzido pelo bispo de Vila Real.
Com boas intenções admiti mais tarde como possível que a vassoura que a mulher
trazia fosse de giesta que ali colheu e a levasse para varrer a sua casa. Ou talvez fosse
devota do culto romano e fosse ali para comunicar com os seus antepassados.
Entretanto um corvo pousou nos sobreiros que recebiam a luz do altar romano, o
qual dizia coisas que não se percebiam bem. Fiquei com a ideia de que eram insultos
dirigidos ao Botelho. Talvez fosse a mulher que anteriormente perseguiu com a lança
e se tenha transformado em corvo. Via-se no rosto do Botelho que estava amedrontado
com os previsíveis poderes do corvo. Ficámos sem saber o que se passou. Só os
sacerdotes poderão desvendar o mistério.
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