Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VII

No dia seguinte, saímos da povoação de Carviçais antes do amanhecer. Já íamos longe quando tocou o sino da sua igreja, para a missa ou para um baptizado. O sol abriu as suas portas e então pude ver ao longe, entre as montanhas e o céu, a Quinta do Fidalgo de Martim Tirado, a qual distava dali umas cinco léguas, seguindo pelo caminho do Canamor. Tive que esperar um pouco porque o meu ajudante se atrasou. 

Entretanto pus-me a observar aquelas montanhas, parecendo-me que estavam pintadas. Eram uma coisa admirável. Porém, o Botelho explicou-me que não estavam pintadas, mas cobertas de um manto multicolor de arbustos e árvores, sobretudo rosmaninho, giesta, esteva, pinheiros, castanheiros, amendoeiras, oliveiras e cereal. 

Os pássaros, com os mais variados chilreios, saudavam a chegada do sol e os insectos zumbiam em coro por todo o lado, lançando-se sobre as flores para recolherem o seu néctar.

Tomámos o caminho do Canamor e pouco depois penetrámos num bosque de sobreiros, onde vimos algumas pessoas conhecidas do Botelho a tirar a cortiça daquelas árvores, que naquele sítio serviam para fazer colmeias e barcos para transportar sonhos.

Continuando a nossa viagem avistámos perto de nós, numa colina, as ruínas de uma vila romana. Fiquei assombrado com uma luz azul que as ligava, em arco, à copa dos sobreiros da mata que acabávamos de atravessar. A cor azul da luz misturada com a cor verde dos sobreiros criava uma cor verde-clara cujo matiz não era conhecido na natureza. Nunca tinha visto nem ouvido falar de coisa semelhante. O Botelho primeiro dizia que não via nada, talvez por estar virado de frente para o sol. Persignou-se e mudou de direcção. Então exclamou maravilhado que aquilo era um milagre ou uma coisa extraordinária do outro mundo. Louvado seja Deus! Não se ficou a saber se o Botelho passou a ver o que não via antes por ter mudado de direcção ou por se ter persignado. Talvez estivesse em pecado e ao persignar-se terá expulsado o demónio, bruxedo ou coisa parecida que o impedia de ver. Poderia estar a ver coisa diferente do que eu via por se ter persignado. 

Tinha dúvidas sobre se o arco da luz partia das ruínas romanas em direcção aos sobreiros, ou se partia destes em relação àquelas. Aproximámo-nos das ruínas e então pudemos ver que a luz partia de um altar romano, que estava no cruzamento de caminhos. Tudo indicava que a luz provinha do interior da rocha do altar. A ser assim estávamos a assistir a um milagre. Além disso, até então ninguém tinha falado naquela luz. Aproximámo-nos mais e então eram visíveis uns veios azuis na pedra. 

Poderia a luz azul ser o reflexo daqueles veios e não vir do seu interior. Não constava que até então alguém tivesse visto aquela luz. O Botelho explicou que aquele altar tinha sido desenterrado uns dias antes, e que estaria muito sujo da terra que o cobria. No dia em que ali chegámos choveu muito, a chuva terá limpado o altar e então passou a brilhar. Mudámos o altar numa direcção em que não recebia directamente os raios do sol. A luz azul continuava a sair do altar mas um pouco menos intensa. Poderia receber a luz solar indirectamente, que era muito intensa, naquele sítio. Poderia ser também o espírito de um ou vários romanos que, tendo fugido do inferno ou do purgatório, vagueavam pelo mundo. 

Nisto vimos uma mulher velha de luto a aproximar-se de nós com uma vassoura na mão. O Botelho, dado o seu carácter impetuoso e a ambição de ganhar fama, em vez de falar com a mulher, logo considerou que ela era uma bruxa perigosa, pegou na lança e foi na sua direcção com o objectivo de a agredir ou trespassar se necessário. A mulher ou bruxa, ao aperceber-se das intenções daquele, logo desatou a correr e desapareceu de forma misteriosa atrás de uns penhascos. Teria razão o Botelho ao considerá-la bruxa? Se fosse bruxa teria usado a vassoura para voar e não o fez. Talvez não o tenha podido fazer porque o Botelho usava na lança um crucifixo benzido pelo bispo de Vila Real. 

Com boas intenções admiti mais tarde como possível que a vassoura que a mulher trazia fosse de giesta que ali colheu e a levasse para varrer a sua casa. Ou talvez fosse devota do culto romano e fosse ali para comunicar com os seus antepassados. 

Entretanto um corvo pousou nos sobreiros que recebiam a luz do altar romano, o qual dizia coisas que não se percebiam bem. Fiquei com a ideia de que eram insultos dirigidos ao Botelho. Talvez fosse a mulher que anteriormente perseguiu com a lança e se tenha transformado em corvo. Via-se no rosto do Botelho que estava amedrontado com os previsíveis poderes do corvo. Ficámos sem saber o que se passou. Só os sacerdotes poderão desvendar o mistério.

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