Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XI

Continuando a viagem íamos ambos calados. Só se ouvia o tropel dos nossos animais, o seu espirrar intermitente para afastar as moscas, o ruído das quedas de água e o incómodo cantar das cigarras, situação que era muito aborrecida para mim. Então pedi ao Botelho, que era natural de Martim Tirado, para falar da história do Fidalgo e da sua Quinta.

Segundo o meu ajudante, Dom Baldo, antes de ser Fidalgo, era conhecido pelo apelido de Estanqueiro, o qual vinha da sua antiga família da povoação de Mós. Levantava-se cedo, logo depois do cantar do galo na capoeira, e ainda de noite rumava para os campos que cultivava com dois jumentos, cuja preocupação era fazerem o menos possível. O Estanqueiro contrariava a sua preguiça com umas ligeiras chibatadas. Não os queria molestar muito pois sabia que aqueles animais tinham pouca força, não nasceram para trabalhar e queria evitar remorsos de agredir animais tão mansos. Mesmo assim com eles cultivava os cereais necessários para o seu consumo, depois de guardar as sementes para o ano seguinte, de pagar as avenças ao barbeiro, ao ferrador e as maquias ao moleiro. Além disso, na segunda parte do dia guardava um pequeno rebanho de ovelhas e com dois galgos caçava coelhos e lebres e de vez em quando um pequeno javali. Colhia uns cestos de uvas, das quais guardava algumas para passar e restantes pisava-as num tanque de granito, cujo vinho dava para encher umas duas ou três talhas de barro. O vinho era bom devido à qualidade das uvas e ao modo como o fazia. O segredo de o fazer assim guardava-o só para ele.

A sua principal distracção, especialmente quando guardava o rebanho, era tocar flauta que ele próprio fez de um ramo de sabugueiro. Inventava as músicas que tocava, inspirado no canto das aves, das cigarras, no soprar do vento, nas quedas de água, no cair da chuva e no uivar dos lobos. Não se saía nada mal. Havia mesmo quem o gabasse de tanto jeito para a música. De qualquer modo convidavam-no para tocar em festas e ele aceitava.

Perto da casa dele havia uma quinta com terrenos férteis e muita água, e um palácio de uma torre. Pertencia a um mouro, que desapareceu dali havia muito tempo em circunstâncias misteriosas. Talvez tivesse ido ao Norte de África visitar a família, como era seu costume, e tivesse ficado por lá, vivo ou morto. Constava que a quinta estava encantada por uma moura que a guardava. Ninguém ousava entrar ali, com receio de que alguma coisa trágica pudesse acontecer.

Para espanto e admiração de todos, o Estanqueiro anunciou que tinha comprado aquela quinta, sem explicar a quem a comprou, por que preço e onde foi buscar o dinheiro. Não a ocupou logo. Uns dias depois do anúncio da compra, apareceu ali com o bruxo da Torre D. Chama, que era o mais poderoso de toda a região, e com três ajudantes, também bruxos. Tanto procuraram que encontraram a fonte da quinta onde morava a moura que encantava a quinta, e negociaram com ela. Esta permitia que Dom Baldo entrasse na quinta com a condição de a deixar morar no palácio ou na torre.

Firmado o contrato com a moura, o Estanqueiro aproveitou a proximidade da Feira dos Gorazes, que se realizava todos os anos em Mogadouro, para aí trocar os seus jumentos por dois cavalos, dos mais caros, pagando logo a diferença em dinheiro. Aí comprou também a pronto pagamento dois rebanhos de ovelhas. Um indivíduo da Macieirinha, que antes morara nas Peladinhas, conhecido por Quim, assistiu ao negócio.

Contratou pessoal suficiente para cultivar a quinta e para reparar o palácio e a torre, o qual em tamanho e qualidade era o melhor das redondezas. Para recuperar a torre e o palácio chamou mestres de obra famosos.

Passou a vestir-se como um nobre. Mudou também o seu apelido de Estanqueiro para Baldo. Este apelido era usado pelo Conde de Vimioso.

Então as pessoas do seu povo e dos povos vizinhos passaram a tratá-lo por Fidalgo Baldo ou Dom Baldo. O Botelho não acreditava que estes títulos fossem oficiais. Terá sido ele que os pôs a si próprio.

Quanto à origem do dinheiro havia várias opiniões.

Algumas pessoas diziam que o Estanqueiro teria enriquecido com o negócio do minério. Comprá-lo-ia na Fonte Santa de Mogadouro ou na Quinta das Pereiras e vendê-lo-ia aos castelhanos perto da fronteira de Freixo de Espada à Cinta. Tudo em segredo. Isto era a voz do povo, que umas vezes acerta e outras erra. Só é seguro que ele tinha uma mina de ferro na ladeira da Odreira que herdou de seu pai, a qual vinha do tempo dos romanos. Mas nunca a explorou, nem ninguém queria explorá-la. Tudo porque segundo os relatos antigos aquela mina era muito comprida, atravessando o monte, e as pessoas e animais que lá entravam não voltavam a ser vistos, salvo um cão que entrou num lado do monte e saiu do outro lado. A água que vinha da mina, antes das pessoas e animais lá desaparecerem, saía limpa e depois passou a ser vermelha, aumentando o medo de lá entrar.

Havia outras pessoas que diziam que não se enriqueceu com o negócio do minério, mas com uma fortuna herdada de um tio de sua mulher que era judeu, não tinha descendentes e viveu em Macedo de Cavaleiros.

O bruxo de Meirinhos – pessoa muito mentirosa – dizia que Dom Baldo encontrou um cordeiro de ouro, em tamanho natural, quando no lugar do Canamor escavava a terra para plantar uma árvore.

Terminava assim a história do Estanqueiro, e começava a história de Dom Baldo.

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