Continuando a viagem íamos ambos calados. Só se ouvia o
tropel dos nossos animais, o seu espirrar intermitente para afastar as moscas,
o ruído das quedas de água e o incómodo cantar das cigarras, situação que era muito
aborrecida para mim. Então pedi ao Botelho, que era natural de Martim Tirado, para falar da
história do Fidalgo e da sua Quinta.
Segundo o meu
ajudante, Dom Baldo, antes de ser Fidalgo, era conhecido pelo apelido de Estanqueiro, o qual vinha da sua antiga
família da povoação de Mós. Levantava-se cedo, logo depois do cantar do galo na capoeira, e ainda de noite rumava para os campos que cultivava com dois jumentos, cuja
preocupação era fazerem o menos possível. O Estanqueiro contrariava a sua preguiça
com umas ligeiras chibatadas. Não os queria molestar muito pois sabia que
aqueles animais tinham pouca força, não nasceram para trabalhar e queria evitar remorsos
de agredir animais tão mansos. Mesmo assim com eles cultivava os cereais
necessários para o seu consumo, depois de guardar as sementes para o ano seguinte, de pagar
as avenças ao barbeiro, ao ferrador e as maquias ao moleiro. Além disso, na segunda
parte do dia guardava um pequeno rebanho de ovelhas e com dois galgos caçava coelhos
e lebres e de vez em quando um pequeno javali. Colhia uns cestos de uvas, das
quais guardava algumas para passar e restantes pisava-as num tanque de granito, cujo
vinho dava para encher umas duas ou três talhas de barro. O vinho era bom devido à
qualidade das uvas e ao modo como o fazia. O segredo de o fazer assim guardava-o só para
ele.
A sua principal
distracção, especialmente quando guardava o rebanho, era tocar flauta que ele próprio fez de um ramo de sabugueiro.
Inventava as músicas que tocava, inspirado no canto das aves, das cigarras, no soprar do
vento, nas quedas de água, no cair da chuva e no uivar dos lobos. Não se saía nada mal.
Havia mesmo quem o gabasse de tanto jeito para a música. De qualquer modo convidavam-no
para tocar em festas e ele aceitava.
Perto da casa dele
havia uma quinta com terrenos férteis e muita água, e um palácio de uma torre. Pertencia a um mouro, que desapareceu
dali havia muito tempo em circunstâncias misteriosas. Talvez tivesse ido ao Norte de
África visitar a família, como era seu costume, e tivesse ficado por lá, vivo ou morto.
Constava que a quinta estava encantada por uma moura que a guardava. Ninguém
ousava entrar ali, com receio de que alguma coisa trágica pudesse acontecer.
Para espanto e
admiração de todos, o Estanqueiro anunciou que tinha comprado aquela quinta, sem explicar a quem a comprou, por que preço
e onde foi buscar o dinheiro. Não a ocupou logo. Uns dias depois do anúncio da
compra, apareceu ali com o bruxo da Torre D. Chama, que era o mais poderoso de
toda a região, e com três ajudantes, também bruxos. Tanto procuraram que encontraram a
fonte da quinta onde morava a moura que encantava a quinta, e negociaram com ela.
Esta permitia que Dom Baldo entrasse na quinta com a condição de a deixar morar no
palácio ou na torre.
Firmado o contrato
com a moura, o Estanqueiro aproveitou a proximidade da Feira dos Gorazes, que se realizava todos os anos em
Mogadouro, para aí trocar os seus jumentos por dois cavalos, dos mais caros, pagando logo
a diferença em dinheiro. Aí comprou também a pronto pagamento dois rebanhos de
ovelhas. Um indivíduo da Macieirinha, que antes morara nas Peladinhas, conhecido por
Quim, assistiu ao negócio.
Contratou pessoal
suficiente para cultivar a quinta e para reparar o palácio e a torre, o qual em tamanho e qualidade era o melhor das
redondezas. Para recuperar a torre e o palácio chamou mestres de obra famosos.
Passou a vestir-se
como um nobre. Mudou também o seu apelido de Estanqueiro para Baldo. Este apelido era usado pelo Conde de
Vimioso.
Então as pessoas do
seu povo e dos povos vizinhos passaram a tratá-lo por Fidalgo Baldo ou Dom Baldo. O Botelho não acreditava que
estes títulos fossem oficiais. Terá sido ele que os pôs a si próprio.
Quanto à origem do
dinheiro havia várias opiniões.
Algumas pessoas
diziam que o Estanqueiro teria enriquecido com o negócio do minério. Comprá-lo-ia na Fonte Santa de Mogadouro ou na
Quinta das Pereiras e vendê-lo-ia aos castelhanos perto da fronteira de Freixo de
Espada à Cinta. Tudo em segredo. Isto era a voz do povo, que umas vezes acerta e
outras erra. Só é seguro que ele tinha uma mina de ferro na ladeira da Odreira que herdou
de seu pai, a qual vinha do tempo dos romanos. Mas nunca a explorou, nem ninguém
queria explorá-la. Tudo porque segundo os relatos antigos aquela mina era muito
comprida, atravessando o monte, e as pessoas e animais que lá entravam não voltavam a
ser vistos, salvo um cão que entrou num lado do monte e saiu do outro lado. A água
que vinha da mina, antes das pessoas e animais lá desaparecerem, saía limpa e depois
passou a ser vermelha, aumentando o medo de lá entrar.
Havia outras pessoas
que diziam que não se enriqueceu com o negócio do minério, mas com uma fortuna herdada de um tio de sua mulher que era
judeu, não tinha descendentes e viveu em Macedo de Cavaleiros.
O bruxo de Meirinhos
– pessoa muito mentirosa – dizia que Dom Baldo encontrou um cordeiro de ouro, em tamanho natural, quando no lugar do
Canamor escavava a terra para plantar uma árvore.
Terminava assim a
história do Estanqueiro, e começava a história de Dom Baldo.
Sem comentários:
Enviar um comentário