Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo IX

Aproximámo-nos de uma ribeira chamada Vilela, sendo nosso desejo beber da sua água limpa e fresca. Os cágados, que estavam a descansar ao sol sobre as pedras das margens da ribeira, ao darem conta da nossa presença submergiram lentamente na água, onde depois nadavam em círculos, provavelmente por influência dos astros.

Perto dali numa colina havia um colmeal com colmeias de cortiça, cercado por um muro alto de pedra de xisto, de forma circular, com remates em lousa salientes para o exterior, semelhantes aos anéis de Saturno, e uma porta pequena, tudo para proteger as colmeias da acção dos predadores, entre eles os ursos.

As abelhas saíam e regressavam às colmeias, a grande velocidade, num zumbido permanente, carregadas de néctar e de pólen. Depositado o produto nos favos da colmeia comiam, repousavam o suficiente para recuperar as forças e partiam de novo com o mesmo entusiasmo. De vez em quando faziam voos em círculo, de subida e descida acentuados, cuja finalidade só elas sabiam. Seria por puro prazer ou para adquirirem treino para contornar os ataques dos abelharucos, ou os obstáculos que surgiam diariamente. De qualquer modo era um comportamento espectacular.

A uns cem passos dali havia um moinho de água. Via o seu rodízio que girava em torno de si próprio com a força da água e lançava-a com ruído em todas as direcções. 

O moleiro, chamado Gabriel, natural de Fornos, acabava de chegar com duas cargas de trigo.

Resolvi parar um pouco.

O meu cavalo e o jumento do Botelho, esfomeados, comiam a erva fresca das margens da ribeira.

Sentei-me à sombra de um olmo perto de uma laranjeira com laranjas maduras. Chamei pelo Botelho para trazer os alforges a fim de ali comermos as provisões que tínhamos. Uma pedra servia de mesa e duas outras de bancos. Com a comida bebemos um vinho tinto produzido na região da Vilariça. Era de tão alta qualidade que depois de o beber via as serras andarem à nossa volta, a ribeira a correr em sentido contrário, o moinho inclinado quase a cair em cima do moleiro e o colmeal e a cerca no ar a girarem à volta de si próprios quase em cima de nós. Passados uns instantes já tinha dúvidas se era o colmeal que girava quase em cima de nós ou se era a lua cheia. Só o vinho não poderia gerar uma situação tão fantástica. Talvez fosse qualquer interferência da luz do altar romano ou de algum espírito da necrópole de São Cristóvão.

Deitei-me na erva e logo adormeci. Tive um sonho surpreendente.

Encontrei-me no outro mundo tal como sou, vivo, sem saber como lá cheguei.

Então estava sentado à sombra fresca de uma árvore com uma copa de folhas azuis e frutos perfumados e de boa pinta, muito parecidos com as laranjas de Mazouco. A copa da árvore fez-me recordar a abóbada da Igreja de Carviçais.

Tinha alguma fome e apetecia-me comer aqueles frutos. Porém, não toquei em nenhum, porque tive a premonição de que não era permitido a ninguém comê-los sem merecê-los. Eu merecia comê-los? Não sabia. Tinha dúvidas. Pior do que isso, a serpente maldita poderia ter-se transformado naqueles frutos.

Entretanto começou a chover. Não tinha capote. Pensei que ia molhar-me. Surpreendentemente as folhas da árvore beberam toda a chuva, sem cair uma gota sobre mim, nem sobre o solo. Ou seria uma chuva que pela sua natureza não molha, nesse aspecto muito diferente daquela que caía na terra.

A luz que surgiu era tão clara e afectuosa que eu já não necessitava de mais nada. Então, ou me esqueci da fome ou me passou. Talvez me tenha passado, porque quando estamos felizes quase não necessitamos de comer e de beber.

Tudo isto me pareceu fantástico em comparação com aquilo que se passava e ainda se passa na Terra.

À minha frente passava um rio que levava água abundante, a qual era mais pura que aquela que nasce na fonte Castalia em Monte Parnasso, onde se purificavam e creio que ainda se purificam as ninfas antes de se acercarem de Apolo para tocarem canções.

Pus-me a observar um cenário belíssimo que se encontrava naquele rio, na margem contrária àquela em que eu me encontrava.

Um homem que tinha aspecto de santo estava sentado num trono dourado, fazendo de juiz (ou era juiz de profissão). Segurava numa das suas mãos uma balança de dois pratos e na outra uma espada. À sua frente estava um livro aberto. Donde me encontrava não podia ler o que estava lá escrito. Apesar disso, acreditei que ali estivessem escritas as leis do céu ou pelo menos as de Moisés.

Pelo rio de que falei iam uns barcos à vela carregados de gente em direcção àquele trono, devagar, porque o vento era pouco. Os barcos eram parecidos com aqueles que navegavam no rio Douro no lugar da Congida.

As pessoas acercavam-se do trono. Esperavam que o juiz as chamasse, umas sentadas e outras de pé, porque as cadeiras não eram suficientes para todas. Algumas delas tinham os rostos tranquilos e outras mostravam-se apavoradas. Daquelas pessoas só conhecia uma, o Horácio de Mazouco.

Acordei bruscamente com os gritos de um homem e o ladrar de um cão que vinham dos lados do moinho. Era o moleiro que se queixava do meu cavalo e do jumento do Botelho, porque lhe tinham comido umas verduras na sua horta e duas quartas de cereal que se encontravam em frente do moinho. Com um pau e a ajuda de um cão afugentava os nossos animais. O jumento fugia como se não tivesse reumatismo.

Disse-lhe que tínhamos o direito de aboletamento, dada a nossa profissão, coisa que ele não sabia o que era e tive que lhe explicar. Não iríamos utilizar este nosso direito. Prometi-lhe que mais tarde lhe daria três quartas de cereal para pagar os prejuízos. Além disso, faríamos de conta que não sabíamos que o seu cão não tinha licença.

Censurei o Botelho por, em vez de guardar os nossos animais e vigiar os nossos inimigos, ter adormecido. De facto, segundo as regras da nossa profissão, quando o comandante dorme o ajudante deve estar vigilante para todas a eventualidades e, no nosso caso, para a aproximação dos salteadores.


 Respondeu-me que aquele vinho era demasiado forte para beber ao almoço.

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