Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VIII

Pouco tempo depois chegámos às imediações de uma igreja cristã, cujo santo se chamava Cristóvão, o qual protegia as pessoas em viagem, quer durante a vida, quer depois da morte. A povoação que ficava ao seu lado também tinha o mesmo nome.

Subimos as escadas de um grande rochedo, talhadas na pedra, para entrarmos naquela igreja, visitar o seu santo e pedir-lhe protecção. O santo concedia aquela protecção, não a toda a gente, mas apenas às pessoas que de facto se arrependessem das suas más acções. Não bastava dizer que estavam arrependidas. O santo averiguava a autenticidade do que diziam, porque tinha acesso directo ao seu pensamento. Certamente que nunca daria a sua protecção aos viajantes salteadores das estradas que não quisessem mudar de vida.

Encontrámos as portas da igreja fechadas, mas pudemos ver o seu interior através de umas janelas com grades de ferro, destinadas a permitir às pessoas em viagem que pudessem ver e falar com o santo a qualquer hora do dia, dado que ali passava muita gente. O santo, durante o dia, estava sempre disponível para receber as pessoas.

Na parede da igreja estava pintada a figura daquele santo, em cima de um rochedo, com uma barca de cada lado. A barca maior transportaria as pessoas vivas e a mais pequena as almas, dada a magreza das figuras humanas que estavam dentro dela e sua aparente leveza. Ao leme das barcas via-se uma figura brilhante parecida com o São Cristóvão, ou seria ele mesmo. 

Porém, a ribeira que circundava o templo nunca teve água suficiente para nela navegarem barcas, salvo em raras ocasiões de trovoadas com chuvas abundantes.

Talvez as barcas simbolizassem as viagens humanas, os caminhos e as estradas, fossem as pessoas a pé, a cavalo, de barco, através das nuvens ou de qualquer outro meio de transporte.

Detive-me a observar outra pintura no tecto da igreja, sobre o firmamento, tal como se encontra descrito no Livro do Génesis. A pintura estava tão bem feita que me pareceu por momentos que estava a ver o céu natural, salvo umas pequenas diferenças, das quais já não me recordo bem. 

No centro do firmamento encontrava-se a Terra e à sua volta as estrelas e os astros. A Terra era maior do que as estrelas e os outros astros.

Descíamos as escadas do rochedo, pela parte da frente da igreja, quando o meu ajudante caiu em cima delas, ficando ferido pelo menos nas costelas. Então queixava-se, ai, ai… e suplicava valha-me Deus. No meio deste triste episódio lembrou-se de que não tínhamos feito o pedido de protecção ao santo. Propus que o pedido se fizesse ali mesmo, pois o espírito do santo estava em todo o lado. Mas ele, pessoa entendida no assunto por ter frequentado o seminário durante alguns anos, do qual só saiu por ter que cuidar dos irmãos por morte do pai de todos eles, explicou que o pedido feito nas escadas não tinha tanto valor como aquele que era feito à janela da igreja se esta estivesse fechada ou dentro dela se estivesse aberta. A observação tinha razão de ser. De facto, atendendo à preguiça que reina no ser humano, desde o tempo de Adão e Eva, que quiseram comer o fruto da árvore que não plantaram, se os pedidos feitos nas escadas valessem o mesmo daqueles que eram feitos junto às janelas do templo, quando estivesse fechado ou no seu interior, quando estivesse aberto, então as pessoas evitariam subir as escadas. Além disso, o ser humano gosta de receber muito e de dar pouco ou nada. Seja como for, não visitar o santo estando perto dele, seria para ele uma desconsideração.

Cumprida a nossa obrigação junto do santo e depois de descer as escadas do rochedo, já nos dirigíamos ao lugar onde se encontravam os nosso animais e então, virando-me para a fachada da igreja para me despedir do santo, reparei que do lado direito dela existia um caminho junto a uma necrópole e do seu lado esquerdo um caminho junto a uma povoação com muitos habitantes. Isto surpreendeu-me. Relacionei estes caminhos com as barcas. O da povoação representaria a viagem dos vivos e o da necrópole representaria a viagem das almas.

As sepulturas escavadas na rocha alinhavam-se em forma de barca. Algumas tinham uma cobertura apropriada e outras estavam a descoberto. Talvez estas tenham sido violadas por ladrões de tesouros. De facto, naquela povoação os familiares dos defuntos depositavam nos seus túmulos comida para a viagem daqueles e alguns artefactos, se possível em ouro, para os usarem no outro mundo, caso fosse permitido ou pelo menos para se apresentarem.

Havia também sepulturas escavadas na terra, com coberturas de lajes de xisto, algumas removidas, porventura por ladrões. Em muitas coberturas estavam gravados os nomes dos defuntos. Um dos nomes tinha o meu apelido. Fiquei muito emocionado, por pensar que seria o apelido de um meu antepassado. Aliás, já alguém me havia dito que antepassados meus viveram na povoação de São Cristóvão. Isto emocionou-me profundamente. Curvei-me em frente daquele túmulo em homenagem à pessoa que ali foi enterrada. O meu ajudante fez o mesmo, talvez para agradar ao seu comandante, cargo que muito gostaria de ocupar.

Desde tempos remotos viveu ali gente e quis deixar gravado na rocha o seu modo particular de viver e transmiti-lo às gerações futuras. Sem aquelas rochas escavadas, sem as inscrições nas coberturas das sepulturas, sem os artefactos colocados nos túmulos e sem a igreja, provavelmente nem saberíamos que aquele lugar foi povoado tão remotamente.

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