Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVII

Então ouviu-se o ranger do portão da cerca do palácio, e a Josefa abriu-o e fez-nos sinal para entrarmos. Um jardim, de forma rectangular, ocupava a parte central da cerca. Ao meio do jardim havia um espelho de água também rectangular, que logo se transformou em redondo. O Botelho não viu nenhuma transformação, talvez por distracção. De qualquer modo fiquei sem saber ao certo se o espelho de água, quando inicialmente o vi, era mesmo rectangular ou se o confundi com o formato do jardim, dada a forte luminosidade do sol de um céu limpo, que até feria a vista, o qual poderá ter criado ilusão de formas.

O jardim tinha rosas de várias cores e outras flores. Algumas daquelas plantas floridas, segundo constava, foram trazidas pelo mouro do Norte de Africa.

Depois choveu um pouco. As plantas guardaram uma parte daquela água para irem saciando a sua sede, e a outra parte transformaram-na em perfumes que iam espalhando no ar em sinal de agradecimento às nuvens pela prenda recebida, e para atrair os insectos.

Umas gotinhas daquela água ficaram a pairar no céu e então o sol, ao vê-las, lançou alegremente os seus raios dourados na sua direcção. Manifestaram recíproca paixão, formando um arco-íris para que todo o mundo o soubesse.

Associei emocionalmente as flores à delicadeza da noiva, à sua beleza, à primavera, à renovação e ao ciclo eterno da vida.

Circundado o jardim, estávamos à entrada de um forno ligado a uma adega. Aí duas doceiras do Felgar faziam os bolos do casamento e preparavam os assados de cordeiro. Uma vez dentro deparámos com vários presuntos pendurados do tecto, tábuas com dezenas de queijos de ovelha, umas pipas de vinho e bastantes pães de trigo cozidos.

A Josefa encaminhou-nos para a entrada do palácio. Em cima havia um brasão com os desenhos de uma torre, de abelhas a voar e um ramo de flor de amendoeira. A torre significava riqueza e poder, as abelhas trabalho e o ramo de flor de amendoeira beleza, cortesia, afectividade e nobreza.

O salão do palácio deixou-me surpreendido com o seu comprimento. Nunca tinha imaginado que houvesse uma salão assim, tendo havido também comentários idênticos do Botelho. A Josefa explicou-nos que se tratava de uma ilusão. Tudo resultava do reflexo dos espelhos colocados nas paredes.

À minha frente estava um quadro pintado a óleo cuja pintura representava Dom Baldo e a sua mulher, Dona Albertina. Ele usava traje de fidalgo: botas pretas altas, calças e camisas brancas, casaco e colete azuis, esporas de ouro tipo orientais e plumas no chapéu. Do seu lado direito, numa mesa decorativa, estava uma jarra de flores de amendoeira com abelhas a esvoaçar, semelhante ao brasão da família. Do seu lado esquerdo estava a Dona Albertina, com traje elegante e de qualidade correspondente ao de mulher de fidalgo.

Depois passámos para a salão do tesouro. Nas paredes havia tapetes decorados com cenas de caça e colecções de espadas e punhais. As espadas eram muito curvas na extremidade. Estas e os punhais tinham os punhos e as bainhas decorados com pedras preciosas embutidas de várias cores, sobretudo o azul marinho. Apesar de usar espada na minha profissão fiquei impressionado com o poder cortante daquelas que vi na parede. Em algumas vitrinas estavam elmos, esporas e estribos de ouro.

A Josefa pediu-nos para tocar naqueles objectos. Não fomos capazes de o fazer. Era-nos impossível mexer os pés e as mãos. Então explicou-nos que aquele tesouro tinha sido encontrado enterrado, dentro de arcas de pele de camelo, na torre do mouro. Para o retirar foi preciso chamar um mouro ou bruxo da Torre Dona Chama, que quebrou o encanto e voltou a encantá-lo naquela sala. Acrescentou que nas paredes do palácio de Dom Baldo residia uma moura e quando as pessoas se aproximam para roubar o tesouro, ela encantava-as deixando-as imobilizadas. Isso já tinha acontecido umas semanas antes com a quadrilha da Serra de Mós. Deu-nos pormenores sobre as características do seu chefe. Era alto e magro, usava calças e camisa rotas, um chapéu de aba larga com alguns buracos e um tapolho na vista direita, fazendo supor que aquela vista estava furada. O tapolho não só tapava o olho direito mas também metade da cara daquele lado. Havia quem afirmasse que ele não tinha qualquer defeito na vista e na cara e que usava o tapolho como disfarce. Era por isso que lhe chamavam o Tapolho de Mós.

A Josefa queria mostrar-nos as restantes divisões do palácio, a torre e os seus segredos. Tal não foi possível. Mal acabávamos a visita ao salão do tesouro ouviam-se pessoas a falar na cerca do palácio. Fomos ver, com excepção do Botelho e da filha da Josefa, que ficaram a conversar. Era o regresso do casamento. À frente iam os noivos e atrás deles os seus pais, com excepção do pai do noivo que já tinha falecido, os seus familiares e, por último, os convidados não familiares.

O cortejo parou devido a um acontecimento misterioso. Sem que nada o fizesse prever, do lado esquerdo da comitiva, a uns cinquenta passos de distância, num campo bem limpo, surgiu uma enorme plantação de palmeiras, agitadas pelo vento e trespassada por frescos e abundantes raios de sol. No meio desta havia uma estrada, em linha recta, em direcção à entrada de uma casa senhorial com apenas um piso e um pátio largo a toda a volta, sustentado por colunas. A casa estava caiada de branco, com excepção das extremidades das colunas e o rodapé que estavam caiados de azul.

Ao meio da casa havia uma entrada larga com as portas abertas e com sete velas acesas de cada lado.

Começou a ouvir-se a música de um pífaro mágico. Não se sabia se vinha do palmeiral ou do interior da casa. Então surgiu uma mulher alta e magra vinda do interior da casa em direcção à sua entrada. Usava um vestido branco que lhe chegava aos pés, um chapéu redondo sem abas da mesma cor em forma de cone e sandálias de pele fina. Demonstrava uma delicadeza surpreendente: caminhava devagar e parava depois de cada passo que dava, para logo prosseguir suavemente. Chegada ao terraço da casa parou por mais tempo. Depois curvou-se para a frente, cruzou os braços sobre o peito e começou a executar uma dança: girava em torno de si própria, primeiro devagar e depois com bastante velocidade, e nessa altura abriu os braços. Tive a impressão de que o espírito da mulher se uniu aos corpos celestes e girava com eles.

Dois cães, que estavam sentados à frente do pátio, deitaram-se no chão e adormeceram com a música do pífaro mágico. As aves pararam de voar e as árvores curvavam-se em homenagem ao músico que não se via e à dançarina presente.

Terminada a música e a dança, a mulher ficou a olhar para a comitiva do casamento com tantas lágrimas que podiam secar-lhe a alma em pouco tempo. Os cães aproximaram-se de nós com ar simpático, batendo com a cauda no ar.

Alguém duvidou da bondade do que se estava a passar e comentou em voz baixa que aquela mulher seria uma antiga namorada do noivo. A Igreja impedira este casamento por ela ser moura. Teria vindo ali para estragar a festa ou para lhe desejar boa sorte ao noivo. Dom Baldo que estava um pouco distante não ouviu este comentário. Porém, notava-se no seu rosto e na sua postura a desconfiança.

Pareceu ao Botelho que se tratava de um encantamento. Com grande velocidade, agora facilitada pela recente magreza, lançou-se na direcção daquele jardim, perseguindo com a sua lança os cães e a mulher até desaparecerem.

A governanta abriu as portas do salão principal e para aí se dirigiram os convidados. Muitos olhavam para a admirável decoração das paredes e dos tectos e outros para a comida. Ainda não havia ordem, nem para se sentarem, nem para comerem. Dom Baldo saudou os convidados e agradeceu-lhes a sua presença. Após ter dado sinal, o grupo musical de Mogadouro iniciou a execução de uma música, dedicada aos noivos, assim se cumprindo a tradição das casas nobres. O grupo musical era composto por quatro elementos: uma cantora, dois músicos de alaúde e um de rabeca.

Dos convidados de fora destacavam-se dois rapazes solteiros de famílias também fidalgas, um chamado Luís Comenda, que era do Canto, e outro chamado, Amílcar Pinto, que era da Portela.

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