Então ouviu-se o ranger do portão da cerca do palácio, e a
Josefa abriu-o e fez-nos sinal para entrarmos. Um jardim, de forma rectangular,
ocupava a parte central da cerca. Ao meio do jardim havia um espelho de água também
rectangular, que logo se transformou em redondo. O Botelho
não viu nenhuma transformação, talvez por distracção. De qualquer modo fiquei sem saber ao certo se o
espelho de água, quando inicialmente o vi, era mesmo rectangular ou se o confundi com
o formato do jardim, dada a forte luminosidade do sol de um céu limpo, que até feria a
vista, o qual poderá ter criado ilusão de formas.
O jardim tinha rosas
de várias cores e outras flores. Algumas daquelas plantas floridas, segundo constava, foram trazidas pelo mouro do
Norte de Africa.
Depois choveu um
pouco. As plantas guardaram uma parte daquela água para irem saciando a sua sede, e a outra parte transformaram-na em
perfumes que iam espalhando no ar em sinal de agradecimento às nuvens pela prenda
recebida, e para atrair os insectos.
Umas gotinhas daquela
água ficaram a pairar no céu e então o sol, ao vê-las, lançou alegremente os seus raios dourados na sua direcção.
Manifestaram recíproca paixão, formando um arco-íris para que todo o mundo o soubesse.
Associei
emocionalmente as flores à delicadeza da noiva, à sua beleza, à primavera, à renovação e ao ciclo eterno da vida.
Circundado o jardim,
estávamos à entrada de um forno ligado a uma adega. Aí duas doceiras do Felgar faziam os bolos do casamento e
preparavam os assados de cordeiro. Uma vez dentro deparámos com vários presuntos pendurados do
tecto, tábuas com dezenas de queijos de ovelha, umas pipas de vinho e
bastantes pães de trigo cozidos.
A Josefa
encaminhou-nos para a entrada do palácio. Em cima havia um brasão com os desenhos de uma torre, de abelhas a voar e um ramo de
flor de amendoeira. A torre significava riqueza e poder, as abelhas trabalho e o
ramo de flor de amendoeira beleza, cortesia, afectividade e nobreza.
O salão do palácio
deixou-me surpreendido com o seu comprimento. Nunca tinha imaginado que houvesse uma salão assim, tendo
havido também comentários idênticos do Botelho. A Josefa explicou-nos que
se tratava de uma ilusão. Tudo resultava do reflexo dos espelhos colocados nas
paredes.
À minha frente estava
um quadro pintado a óleo cuja pintura representava Dom Baldo e a sua mulher, Dona Albertina. Ele usava traje de
fidalgo: botas pretas altas, calças e camisas brancas, casaco e colete azuis, esporas de
ouro tipo orientais e plumas no chapéu. Do seu lado direito, numa mesa decorativa, estava
uma jarra de flores de amendoeira com abelhas a esvoaçar, semelhante ao brasão da
família. Do seu lado esquerdo estava a Dona Albertina, com traje elegante e de qualidade
correspondente ao de mulher de fidalgo.
Depois passámos para
a salão do tesouro. Nas paredes havia tapetes decorados com cenas de caça e colecções de espadas e punhais. As
espadas eram muito curvas na extremidade. Estas e os punhais tinham os punhos e as
bainhas decorados com pedras preciosas embutidas de várias cores, sobretudo o azul
marinho. Apesar de usar espada na minha profissão fiquei impressionado com o poder cortante
daquelas que vi na parede. Em algumas vitrinas estavam elmos, esporas e
estribos de ouro.
A Josefa pediu-nos
para tocar naqueles objectos. Não fomos capazes de o fazer. Era-nos impossível mexer os pés e as mãos. Então
explicou-nos que aquele tesouro tinha sido encontrado enterrado, dentro de arcas de pele de
camelo, na torre do mouro. Para o retirar foi preciso chamar um mouro ou bruxo da Torre
Dona Chama, que quebrou o encanto e voltou a encantá-lo naquela sala.
Acrescentou que nas paredes do palácio de Dom Baldo residia uma moura e quando as
pessoas se aproximam para roubar o tesouro, ela encantava-as deixando-as imobilizadas.
Isso já tinha acontecido umas semanas antes com a quadrilha da Serra de Mós. Deu-nos
pormenores sobre as características do seu chefe. Era alto e magro, usava calças
e camisa rotas, um chapéu de aba larga com alguns buracos e um tapolho na vista
direita, fazendo supor que aquela vista estava furada. O tapolho não só tapava o olho direito
mas também metade da cara daquele lado. Havia quem afirmasse que ele não tinha
qualquer defeito na vista e na cara e que usava o tapolho como disfarce. Era por isso que
lhe chamavam o Tapolho de Mós.
A Josefa queria
mostrar-nos as restantes divisões do palácio, a torre e os seus segredos. Tal não foi possível. Mal acabávamos a visita ao
salão do tesouro ouviam-se pessoas a falar na cerca do palácio. Fomos ver, com excepção
do Botelho e da filha da Josefa, que ficaram a conversar. Era o regresso do
casamento. À frente iam os noivos e atrás deles os seus pais, com excepção do pai do noivo que
já tinha falecido, os seus familiares e, por último, os convidados não familiares.
O cortejo parou
devido a um acontecimento misterioso. Sem que nada o fizesse prever, do lado esquerdo da comitiva, a uns cinquenta passos
de distância, num campo bem limpo, surgiu uma enorme plantação de palmeiras,
agitadas pelo vento e trespassada por frescos e abundantes raios de sol.
No meio desta havia uma estrada, em linha recta, em direcção à entrada de uma casa
senhorial com apenas um piso e um pátio largo a toda a volta, sustentado por
colunas. A casa estava caiada de branco, com excepção das extremidades das colunas e o rodapé
que estavam caiados de azul.
Ao meio da casa havia
uma entrada larga com as portas abertas e com sete velas acesas de cada lado.
Começou a ouvir-se a
música de um pífaro mágico. Não se sabia se vinha do palmeiral ou do interior da casa. Então surgiu uma mulher
alta e magra vinda do interior da casa em direcção à sua entrada. Usava um vestido branco
que lhe chegava aos pés, um chapéu redondo sem abas da mesma cor em forma de cone e
sandálias de pele fina. Demonstrava uma delicadeza surpreendente: caminhava devagar
e parava depois de cada passo que dava, para logo prosseguir suavemente.
Chegada ao terraço da casa parou por mais tempo. Depois curvou-se para a frente, cruzou
os braços sobre o peito e começou a executar uma dança: girava em torno de si
própria, primeiro devagar e depois com bastante velocidade, e nessa altura abriu os
braços. Tive a impressão de que o espírito da mulher se uniu aos corpos celestes e girava
com eles.
Dois cães, que
estavam sentados à frente do pátio, deitaram-se no chão e adormeceram com a música do pífaro mágico. As aves pararam
de voar e as árvores curvavam-se em homenagem ao músico que não se via e à
dançarina presente.
Terminada a música e
a dança, a mulher ficou a olhar para a comitiva do casamento com tantas lágrimas que podiam secar-lhe a alma em pouco
tempo. Os cães aproximaram-se de nós com ar simpático, batendo com a cauda
no ar.
Alguém duvidou da
bondade do que se estava a passar e comentou em voz baixa que aquela mulher seria uma antiga namorada do noivo. A Igreja
impedira este casamento por ela ser moura. Teria vindo ali para estragar a festa ou
para lhe desejar boa sorte ao noivo. Dom Baldo que estava um pouco distante não ouviu este
comentário. Porém, notava-se no seu rosto e na sua postura a desconfiança.
Pareceu ao Botelho
que se tratava de um encantamento. Com grande velocidade, agora facilitada pela recente magreza, lançou-se na direcção
daquele jardim, perseguindo com a sua lança os cães e a mulher até desaparecerem.
A governanta abriu as
portas do salão principal e para aí se dirigiram os convidados. Muitos olhavam para a admirável decoração das
paredes e dos tectos e outros para a comida. Ainda não havia ordem, nem para se
sentarem, nem para comerem. Dom Baldo saudou os convidados e agradeceu-lhes a
sua presença. Após ter dado sinal, o grupo musical de Mogadouro iniciou a
execução de uma música, dedicada aos noivos, assim se cumprindo a tradição das casas
nobres. O grupo musical era composto por quatro elementos: uma cantora, dois músicos
de alaúde e um de rabeca.
Dos convidados de
fora destacavam-se dois rapazes solteiros de famílias também fidalgas, um chamado Luís Comenda, que era do Canto, e outro
chamado, Amílcar Pinto, que era da Portela.
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